terça-feira, 8 de julho de 2014

O jogo

... A atmosfera de tensão era quase palpável, pairando no ar como uma densa nuvem....e o silêncio das ruas ia pouco a pouco penetrando as portas e janelas que ainda quedavam abertas..Ao fundo de todas as casas,uma mesma luz iluminava todos os rostos que acompanhavam,silenciosos, algumas dezenas de pés que se moviam,freneticamente para lá e para cá...Bem longe,uma corneta,intermitente,apitava,rouca...Ninguém lhe prestava atenção..Era ali,no centro das salas onde se concentrava o ponto para onde todos olhavam..Nos ônibus,nas praças,nas lojas,ninguém falava...Olhos e rostos ansiosos,mãos cruzadas no colo, as bebidas abandonadas na mesa.Distraído,o dono do bar esquecera a torneira aberta,de onde pingava lentamente um líquido indefinido...A criança, sentada no colo do pai,o sorvete esquecido a derreter nas mãos, não tinha coragem de falar, tanta era a comoção que ela adivinhava nos rostos dos pais..Parecia-lhe um ritual de morte,onde era proibido falar,como as avemarias que a avó rezava todos os dias às seis...Só o cachorro,perdido no meio fio e o morador de rua ainda se moviam,tentando arrebanhar comida das mesas abandonadas,enquanto seus ocupantes não despregavam o olhos do emocionante evento que se desenrolava diante de seus olhos...Súbito,a mocinha parada na farmácia, acompanhando do celular a mesma cena que todos, dá um grito, logo acompanhado por todos: Vaaaaaai!Como que movidos por uma mesma força, todas as bocas se abrem num esgar profundo, inclinando-se brevemente para frente. Mãos fechadas,rostos tensos,acompanhando um par de pernas que percorre velozmente o gramado,desviando de mãos e braços e pés que o querem derrubar. O senhor,sentado na porta de casa, segura o rádio como se sua vida dependesse disso...O taxista esqueceu-se de dirigir,ainda que o sinal estivesse aberto e o guarda esqueceu-se de multar..Faz-se um segundo de infinito silêncio e , enfim,na calcada da igreja,o cego,sem que ninguém lhe dissesse nada,levanta-se rapidamente deixando rolar no chão as moedas colhidas no dia , salta no ar,com o punho fechado para cima,gritando com toda a força de seus pulmões:Gooooooooooooooooooooool!!Surpresas, as pessoas em redor, olham para a tela luminosa e veem os jogadores, como uma massa humana e amarela, reunidos no centro do campo, chorando, emocionados, enquanto recebem abraços de todos os companheiros... Atônitos, os adversários não conseguem compreender de onde veio a bola, de quem foi o passe, se houve impedimento ou se o lance foi legal. E então, pressurosamente,aguardando a sua hora de entrar em cena,o árbitro ergue as mãos e confirma o que o cego, surpreendentemente intuira alheio a toda animação...Fora o silêncio e a respiração presa de dezenas de pessoas a leitura necessária para sua interpretação..No banco de praça,o velho senhor,se levanta,a contragosto..Caminha até a mesa,onde estão mais alguns senhores,resmunga algo incompreensível e então,ante o riso geral,tira do bolso e pôe na mesa meia dúzia de cédulas amassadas em frente ao careca que, debochadamente,inclina seu chapéu em agradecimento. E então, ao fundo, começa a se ouvir um som difuso, como uma dúzia de fanfarras e tamborins, enquanto uma multidão invade as ruas. Entre confetes e serpentinas jogados no ar, o cego, sorridente,alheio ao carnaval que se instala em todo lugar,toma sua latinha de moedas,sua bengala e caminha lentamente ate perder-se na última esquina,seguido por seu cão...