segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Notas sobre Notas

Comecei uns três textos e não terminei nenhum.Pois em um dia em que você não consegue sair de casa para comprar um lanche porque tem uma troca de tiros com direito à morte, ambulância,ruas fechadas e viaturas, é preciso dizer alguma coisa.A primeira é que meu lugar de fala é de um privilégio desmedido e meu discurso,velho e gasto.Para não dizer, superficial.Mas se o ato de dizer é um ofício, em tempos sombrios se torna uma necessidade, uma vez que se tem esperança de que a união de signos linguísticos reverbere nas consciências.Porque se meu espaço se torna a cada dia ainda mais atravessado pela política de (in)segurança pública do Estado e ações cotidianas como ir na farmácia, comprar pão ou sair pra lanchar podem ser impedidas pelo risco (qualquer que seja ele), ainda mais evidente é o projeto de barbárie em curso, onde armas se tornam a garantia dos direitos fundamentais de poucos,em detrimento da morte de muitos, qualquer que seja a função ou posição social.O fato é que temos as ruas permeadas de cadáveres,a serem mortos ou já executados,simplesmente porque acreditamos que mais armas e mais homens farão nossa segurança.Não farão.Com nosso entusiasmo,impostos,nossos votos e aplausos, estamos financiando nossa própria execução E se ainda não nos demos conta disso é porque acreditamos que há um critério seletivo entre quem deve ou não morrer em nossa cidade.Não é possível mais ignorar o fato de que somos todos reféns de uma política expansionista, de mercado, que não se importa com o número de mortos, mas com o fluxo de caixa, abastecendo as prateleiras de armas e medo em igual medida. Enquanto comemoramos a morte dos pobres, negros e favelados e fortalecemos o mecanismo de nossos ódios, há um pequeno grupo de pessoas empilhando notas sobre notas e caixas sobre caixas de encomendas.Para nossa segurança,eles dizem.Mas somos nós( em qualquer bairro do Rio, com maior ou menor intensidade, dependendo do valor do IPTU)que não podemos sair de casa, cruzar a cidade ou temos(em muitos casos), coturnos chutando nossas portas, parentes e amigos mortos ou vítimas de violência e soldados armados, muitos com armas de grosso calibre apontadas para todas as direções.E clamamos por ainda mais armas.E homens. E mortes, como um grande projeto desenvolvimentista. ou um espetáculo de péssimo gosto. E o pior de tudo:nos acostumamos a isso.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Narrativas urbanas- 210217

Entro no Uber, com todo o cansaço de mais de duas horas em pé, no calor de uma enfermaria. Apesar de todo o cansaço, a experiência no hospital fora muito proveitosa e eu só queria chegar em casa para despejar no papel todas as novas ideias das práticas de hoje. Cumprimentei o motorista e, logo de cara, percebi que não conseguiria ficar em silêncio, pois ele puxou assunto e comentou sobre o trânsito. Respirei fundo, pausei meu modo off-line de existência (praticamente um modo de sobrevivência desde sempre, para quem me conhece bem) e retribuí educadamente à conversação. Vez em quando olhava para o celular, distraída, um olho na conversa, o outro no Twitter. Foi quando ele me contou que estava adorando a nova profissão, depois de ter se aposentado. -De motorista, perguntei. -Também, ele revelou. Fazendo a pausa necessária ao suspense, ele me olhou com ar misterioso e disse: sou escritor! Estou publicando meu primeiro livro na semana que vem. Pronto! Agora ele tinha minha total atenção. Esquecendo o celular nas mãos, ativei o módulo jornalístico e mergulhei em sua história, na forma como, por obra do acaso, ele conhecera sua primeira personagem, que o levou a todos os demais contos reunidos em sua primeira obra. Falamos do processo criativo, das dificuldades de publicação, de como o cotidiano é um universo infinito de inspiração para quem sabe ouvir e de como, por vezes, nos intervalos da rotina, uma boa história surge assim diante de nossos olhos. Assim como a dele para mim. Ouvir alguém me falar de como escreveu seu primeiro livro só reforça minha convicção de que as histórias que merecem ser contadas quase sempre estão ali, numa brecha do tempo, no intervalo de uma tarefa, no momento em que ficamos em silêncio. Torna-se um contador de histórias envolve então, não somente o exercício trabalhoso de narrar, mas de ouvir o que se vive e o que se sente. As melhores histórias se inscrevem na pele, nos ossos, atravessando nossos dias, por sobre camadas de poeira e cansaço e exigem ser escritas. Mais do que isso. Contadas. Da mesma forma como os personagens chegaram até o escritor, a história dele chegou até mim, sendo repassada brevemente aqui, como uma cadeia que se forma entre palavras e sujeitos, por entre os silêncios do cotidiano.